terça-feira, 31 de março de 2015






laura makabresku











Já só na gravata te levamos morto àqueles caminhos
onde deixaste a marca dos teus pés
Apenas na gravata. A tua morte
deixou de nos vestir completamente
No verão em que partiste bem me lembro
pensei coisas profundas
É de novo verão. Cada vez tens menos lugar
neste canto de nós donde anualmente
te havemos piedosamente de desenterrar
Até à morte da morte

ruy belo








um gosto seco na boca e a certeza da morte que avança sobre a superfície plana da vida. num rasgo de destino o teu rosto a desaparecer como nuvem. suspenso no céu - duas mãos muito fortes seguram o meu corpo: não me deixes cair, ouviste        . não me deixes cair - no dia maior a noite avança. aceito a escuridão como quem atira uma pedra ao vazio - dizes: não fujas - às vezes a minha voz soletra o teu nome e a luz regressa lenta à vida - queria dizer-te que está tudo bem mas não está. o bem existe mas anda tolhido no coração dos homens. dá-me o teu coração. hei-de tomar conta dele e enquanto for viva dar-te-ei os maiores sorrisos de mundo - quero que fiques triste. tens direito a estar triste. abraço-te pela vida fora 




















sexta-feira, 27 de março de 2015






ezgi polat







'Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta'
josé régio








:rapariga. quando não souberes o que dizer cala-te bem caladinha     - é como se te visse de azul celeste. o tom de voz sereno mas bravio. que nunca mais ouvi em nenhuma boca. a desaparecer lentamente pelo corredor fora:       cala-te bem ca-la-di-nha   - tantas vezes te disse como me doía o silêncio. onde me doía o silêncio. que partes do corpo o silêncio parte e desmembra - a isso respondias com altivez: saber calar é a maior virtude dos vivos - tantas vezes me escondia nas moitas. em silêncio. à espera que a tua boca dissesse o meu nome. e não dizia. nada. só vazio            - quando entardecia pedia a deus. nosso senhor. senhor de todos os senhores. que me mostrasse beleza. e juro que via raios de luz mais fortes e flores crescendo mais depressa. e o verde a ser mais verde nas paisagens. as árvores falavam para mim.  juro  - tantas vezes me espanto com a beleza do mundo, onde menos espero. em quem menos conheço - e tu sabias da beleza do mundo. conhecias deus como ninguém conhecia. era o teu deus. um deus maior. interior. firme - quando o deserto do mundo me aflige agarro-me à beleza do mundo e sobrevivo - sobreviver é estar muito caladinha e esperar na moita que alguém me chame. 










quarta-feira, 25 de março de 2015








ezgi polat












É preciso falar baixo no sítio da primavera, junto
à terra nocturna. Junto à terra transfigurada.
Tudo ouve as minhas palavras talvez irremediáveis..
Infatigável perfume se acrescenta nos jacintos, fogo
sem fim circunda suas raízes leves.
É preciso não acordar do seu ofício a luz que inclina
os meus espinhos frios, a lua que inclina
meu sangue ligado e o sangue da terra nocturna.

herberto helder 














não reconhecia a primavera. o segredo dos dias maiores. o regresso dos pássaros     - o caudal dos rios de repente muito azul       - no lugar do cabeço erguem-se as giestas e a figura de um homem precipita-se - dizem que não resistiu ao equinócio. que a neve nas serras altas lhe tinha levado a cor. que desapareceu lentamente como um floco assim posto ao sol     - uma morte calma e tão cheia de luz que todos os flocos do mundo desaparecessem e. de repente. a água ocupasse o vale e só o cabeço resistisse impune - ao lugar do cabeço rumam mulheres e homens de luto. todos de preto. cabeça baixa. esperança ainda viva: que noé nos traga uma arca grande onde meter tristeza e morte - ao subir o monte uma árvore mansa onde encostar o corpo e deixar cair o coração. que ninguém saiba que tão triste assim fiquei. que ninguém o descubra. que o deserto do mundo me acuda   - 










segunda-feira, 16 de março de 2015








ezgi polat
























A semana passada pus-me a enlouquecer. Não te disse nada. Primeiro eram as cortinas rasgadas apenas para que entrasse a luz dos candeeiros e o quarto se tornasse uma espécie de câmara de revelação onde algo começava a existir. Não é inquietante? Algo começar a existir. Pela manhã, depois de não ter dormido, sentava-me na escadaria de pedra e acendia um cigarro.
vasco gato










a inquietação dos dias pares - acordar cansada. com o peso do mundo aos ombros e a cabeça latindo como cão sem dono - ao coração reservei dias calmos. certeza de peixes em cardume. beleza de garças. os mais altos voos        - o tempo resolve-se nítido como cataratas. uma luz muito fina até ao osso. um dia construirei paisagens de uma beleza tão pura que cegue homens sem pele. e ninguém poderá dizer que foi inteiramente feliz      - a proximidade de dois corpos mede-se pela certeza da boca: sim. para sempre - mas nunca nos perdêramos tanto como agora - construímos ninhos de medo e terror em primaveras sem sonhos - talvez o meu silêncio se reproduza até à exaustão.












quarta-feira, 11 de março de 2015









mariam sitchinava












Seguramos o fósforo, e o infinito cresce
entre os astros pacientes, invisíveis, a
mancha do electrão por sobre a chapa.
Não conhecemos deus, a inexistência. Não
procuramos, alta, a vibração
do tempo. Seguramos o fósforo
e a luz é frágil, parca,
necessária.

antónio franco alexandre









ficamos horas a apanhar girinos. ao fim da tarde regressamos a casa. pelo caminho descascamos laranjas. e as caretas dos gomos azedos na boca eram motivo de riso - ao longe ainda se ouviam as rãs e nas galhas da laranjeira os pardais - estava muito calor. tiraste a boina e olhaste para trás: não te atrases rapariga - confesso-me distraída com uma borboleta amarela - em agosto levavas-me sempre a apanhar pinhas: vês. os pinheiros estão carregados delas. falta só um bocadinho de vento - e eu. perante a tua indignação. olhava para a copa dos pinheiros e soprava o mais que podia - tu rias muito alto e a avó vinha ao nosso encontro  -  às vezes. aborrecida. corria quelha abaixo: tio zé. tio zé       - e tu ouvias. percebias tudo. levavas a sério tudo o que te dizia. mesmo que não fizesse sentido. pegavas-me depois pelo braço e levavas-me a ver a tua mulher. a tua maria - dizias-me: vês a minha maria. todo o meu amor lhe pertence - e lembro-me dos seus olhos tão desertos. tão vazios. e nós ficávamos ali. tardes inteiras. a ouvi-la respirar - às vezes levantavas-te e ias pentear-lhe os cabelos. eu fazia-lhe bonitas tranças e encostava a minha cara à dela. tinha uma pele tão macia - outras vezes ficávamos só em silêncio. eu muito encostada a ti acabava por adormecer - quando a avó morreu estavas muito doente. abraçaste-me forte: ai rapariga. morreu-te a tua mãezinha - pouco tempo depois morreu a tua maria. abracei-te forte. segredaste-me: elas vêm buscar-me - e assim foi























domingo, 8 de março de 2015









mariam sitchinava











explicar com palavras deste mundo
que partiu de mim um barco levando-me

Alejandra Pizarnik














não há regresso - entregaram o teu corpo a paraísos sem nome. nem a beleza de reconhecidos poemas te devolve vida - meu coração sem fala. na minha veia cava o buraco para a minha própria sepultura - esta manhã pareceu-me ouvir-te. corri ao teu quarto mas não estavas. não mais estarás. nunca mais te verei sentada na cama inventando paisagens. sobrevoando sonhos. rezando a todos os santos. tentando calçar as pantufas - e esta saudade aflitiva. que não passa, que insiste. que cresce - as mimosas já com flor e eu ainda sem ti. quantas primaveras me faltam para que me sente no teu colo a contar estrelas. para desaparecermos num golpe de luz forte. para sempre - as heras cobrem cada vez mais o muro e as silvas começam lentamente a florir. não tarda serão amoras - gostavas tanto de amoras. ao fim da tarde o teu avental cheio delas. e ficávamos a pintar de negro as bocas e a adivinhar o futuro - não sei se algum dia serei tão feliz como querias - tenho pena que não te tenham conhecido todas as pessoas que hoje me conhecem. falo de ti e não percebem de que ternura eras feita. do sossego dos teus olhos azuis       - quase sempre me custa respirar. viver - já nada posso partilhar contigo. já não te posso dizer: avó. deixa-me aqui ficar. quero chorar muito - tu puxavas-me para ti e abraçavas-me com força.quando parava de soluçar pousavas as tuas mãos nas minhas costas e ficávamos assim horas - mais tarde seguravas-me no queixo e dizias: sossega coração triste. se o amor existe deve estar para chegar.













quarta-feira, 4 de março de 2015











mariam sitchinava
















Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.

eugénio de andrade








é quase primavera e o meu corpo senta-se à sombra de giestas baixas a descobrir ninhos -  as poucas nuvens do céu a formar pássaros. cães. laços. árvores   . e no caminho algumas borboletas cercando margaridas - às vezes. não sei se te lembras. as minhas saias ficavam amarelas e tu ralhavas-me: já andaste no meio das giestas -