quarta-feira, 31 de agosto de 2011











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leonhard kätzel








eu sou feliz na alegria não sentimental que se manifesta;
o que me fraccionava, partiu:
o que tende para um limite finito, desapareceu;
a mata espessa e o grande bosque florescem;
dobro-me conforme o número, género, grau, modo, tempo,
e pessoa que sou vossa.
E assino.



maria gabriela llansol







invariável mente saber que a menina que falava com os pássaros morreu. que já não são seus os pés que conduzem meu corpo. e o abismo, que se diz ser o destino dos fracos, ser agora tudo pelo que luto. e gostava de chorar por já não serem meus os longos cabelos loiros ou ter perdido, em alguma brincadeira de criança, o laço de cetim. às lareiras, fiéis companheiras em dias curtos, durante toda a vida escreverei poemas, como se poemas chegassem para conquistar o fogo. saber que sempre será minha a solidão não me deixa contente, muito pelo contrário, eu que não rezo, por não saber ou por me faltar a fé, rezaria um pai-nosso ou uma avé-maria por companhia. boa companhia. outro corpo vagaroso e desarranjado, que lesse poemas em voz alta,  soubesse falar com os pássaros e descobrisse por que voam. invariável mente descobrir que os braços me fugiram, para um lugar mais quente, e por ali ficaram a abraçar um corpo.  











segunda-feira, 29 de agosto de 2011












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Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

herberto helder











tinha sido uma bonita criança. corpo pequeno, braços estreitos, cabelos muito loiros longos, presos ao caco da cabeça por um laço de cetim mal dado. as pernas muito tortas quase tapadas por um vestido velho e branco. de dia sonhava, assobios vários na boca, falava com os pássaros, passeava o interior do corpo, onde a pele não chega. assim fora durante anos até se tornar uma mulher deserta. costumava sentar-se em árvores de ramos baixos, a quem contava longas histórias, inventadas na hora pela aflição de ter o que dizer, não suportava o silêncio. um dia encontraram o seu corpo à tona de água, como morto. pés descalços e sujos, pele muito roxa, nas mãos um ramo de malmequeres. gritaram. a menina sobreviveu, tinha ido dar de comer aos peixes dissera: os peixes comem flores, não sabias? de pouca coisa tinha conhecimento. sabia de cor todos os caminhos para casa, mesmo os mais difíceis, até os que inventara. sabia que o ano tinha quatro estações. que gostava mais do inverno por se acenderem as lareiras e haver neve. sabia que a sua mãe fugira com um amante estrangeiro – sol de pouca dura: costumava dizer a avó – sabia da avó. o mundo ali não entrava. aquele era o tempo de ser feliz. de inventar assobios vários e falar com os pássaros.
















domingo, 28 de agosto de 2011











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thea eriksson









Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.


herberto helder







não há luz que resista e já no fim do verão volta esta tristeza. distraída - quero dizer-te tantas coisas que não posso. nem querendo omitir seja o que for do meu dia. tão curto. tão terno - guardo todos os lugares por onde passei. são teus. escreve sobre eles uma eternidade de bons sonhos - este agosto morreu e as pessoas foram com ele - sinto a tua falta





















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sophie van der perre













Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos: hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.

herberto helder









quando em pequena sonhava: o mundo era do tamanho de um berlinde. redondo como a terra. de onde cresciam as árvores. de onde nascia a água - ninguém me ensinou a chorar. aprendi sozinha. por tanto se encherem os olhos de lágrimas - sabia que a vida era curta. por ver morrer as flores. partir os pássaros. fugir o sol - o resto aprendi sozinha quando o corpo. já grande. foi de encontro ao horizonte.











sexta-feira, 26 de agosto de 2011








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charlotte boeyden












Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa

sophia de mello breyner andresen









pensar a existência do teu corpo num lugar onde árvores crescem e nenhum céu adormece - em dias de chuva imagino o teu rosto - a pele lateja. nenhum coração ali entrou. só uma voz - quero dizer-te que mundo é este onde dois corpos que se amam separados vivem - se ao meu corpo não faltasse nada. nem esta tristeza fosse já mais certa do que eu viva. se ao meu corpo não faltasse nada. e mesmo se faltando fosse a pele capaz de deixar assim bater um coração livre










































melanie rodriguez












Ganhámos juntos o que perdemos separados:
a luz incomparável, esta luz quase louca
da primavera, esta gaivota
caída dos ombros da luz,
e a leve, saborosa tristeza do entardecer,
como uma carta por abrir,
uma palavra por dizer…

Ganhámos juntos o que vamos perdendo
separados:
a alegria – inocente
cidade,
coração aberto pela manhã,
pequeno barco subindo
nitidamente o rio,

fumegando, fumando
com o seu ar importante de homenzinho…
E a ternura – beijo sobrevoando
o teu rosto fiel,
fogo intensamente verde sobre a terra,
intensamente verde nos teus olhos,
pequeno «nariz ordinário»
que entre os meus dedos protesta
e se debate…

alexandre o'neill













que eu não tivesse memória agora, que o meu corpo me tivesse enganado e não fosse teu o rosto e da tua cabeça não fossem os cabelos loiros que encontram as minhas mãos. quero não me lembrar de onde ficaste, como só nos teus braços eu sabia da vida julgo-me agora morto, até o sentido das árvores foi com o teu corpo. e eu que gostava tanto de árvores e as árvores que sempre pertenceram à terra, como os corpos. que lugar no mundo é o meu. fecho os olhos com força, vou procurar-te, por dentro de toda a minha intenção hei-de esconder-te, com toda a força de vontade hei-de deixar-te fugir para, até ao fim dos meus dias, procurar-te.
















sexta-feira, 19 de agosto de 2011





























Esta rua é alegre. Não é alegre uma rua anónima
mas a rua de são bento em vila do conde
vista por mim certa manhã após a chuva
e o nevoeiro a dissipar-se já junto de santa clara
E no entanto não é a rua de são bento que é alegre
Alegre sou eu. E nem mesmo é que eu seja alegre
Acontece simplesmente que me sirvo destas palavras
numa manhã de chuva para falar falar por falar
e não falar de mim ou de uma certa rua
Não costumo por norma dizer o que sinto
mas aproveitar o que sinto para dizer alguma coisa
Isto, porém, são coisas que há já algum tempo se sabem
e talvez venham aqui para salvar este momento
para salvar romanticamente este momento
ou então para ilustrar um pouco desta vida que se perde
e não só ao viver-se mas ao pensar-se sobre ela
ao atraiçoá-la tantas vezes como condição indispensável do poema
Mas que dizia eu? Dizia apenas "esta rua é alegre"
O mais é só comigo e com a subjectiva forma como passo a minha vida

ruy belo




de todas as estações. em todos os anos. este é o verão. de todas as vidas. por todo o tempo. este é o verão. de ver passar o tempo. de alegrar as ruas. de aquecer as pernas. longas pernas. curtas só em viagens. longas viagens. por ser verão na pele e fazer sol no cabelo. por saber de mim- não querer fugir.não chorar tanto. ou estar menos triste. é tempo de sermos alegres ruas.











domingo, 7 de agosto de 2011




















Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.

Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.

Há muitas coisas que não quero ver.

Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado.



sophia de mello breyner andresen







as aves vão. de passagem. talvez me recordem com alguma saudade. lá desses lugares por onde passam ou para onde migram quando o frio chega - tenho medo de morrer de frio. também eu deveria migrar - adeus. vou de viagem. mais tarde os meus ombros nus procurarão os teus. em tempos mais quentes. com lareiras acesas e o vento de leste zumbindo à janela.












terça-feira, 2 de agosto de 2011



































agora estou na beira do penhasco e não vou voar
como o sublime bicho estratosférico brilhante
de plumas esmeraldas tentativos braços
apenas eu baço de nenhuma asa debruçado
sobre o vidro de água e em baixo
os corredores, dispostos à partida
em músculos compactos, e deles o mais jovem (vestido

de improváveis azagaias) exclama: é esta
a fonte do trovão!, e aponta
um buraco azul mudo nas paredes da pedra. por fora
de mim regresso ao som silencioso da cidade
onde todos os rostos são o papel com linhas de inventário
e as patas dos homens pousam na larga secretária
e ficam, em relevo, caminhando no sangue. e eu queria
para ti, uma cidade sem mistério,

o gelo transparente onde mergulha a imagem
dos corredores, lançados no velocíssimo sossego sem repouso
das palavras trocadas, das bocas e dos braços misturados
pela luz, que é uma areia movediça,
este saber de nós sem ócio e sem negócio, iguais
às portas do trovão, onde o mais sábio
se lança nu compacto deus do fogo e ri


antónio franco alexandre








os precipícios esperam-me - com a idade cheia os dias tristes vão-me parecer tão poucos que nem chorarei. por agora são dias inteiros. imensos. quantificáveis como os oceanos - pensarei: ao tempo que não choro - e as alegrias vão-me parecer tamanhas que o mundo ganhará significado nos meus braços - nenhum afluente procurará os rios. à minha boca vão desaguar peixes e nos meus olhos deixarão a água. doce como a memória - direi: não há regressos.










































Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos Fecha os olhos agora e sossega — o pior já passou há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão desvia os passos do medo. Dorme, meu amor — a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste e pode levantar-se como um pássaro assim que adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra não hão-de derrubar-me — eu já morri muitas vezes e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos agora e sossega — a porta está trancada; e os fantasmas da casa que o jardim devorou andam perdidos nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme, meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui, de guarda aos pesadelos — a noite é um poema que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.

maria do rosário pedreira










tantas vezes imaginei: um elefante de asas ou uma carcaça de abutre entre dentes. lugares a que recorro com frequência quando à cabeça falta o juízo - pois é josé - tinhas razão. por não haver paraíso foram-se as nuvens do céu - pois é josé - sobre amor escrevi pouco.conhecer o coração é como tirar sangue de uma veia cava. funda. como os precipícios. às vezes inquieto-me. é quando fecho os olhos e o céu é uma nesga de luz. muito branca. que parece dizer: o mundo é um lugar pequeno. o mundo é um lugar pequeno - pois é josé - faltou-me uma asa. se a tivesse roubado ao elefante. talvez o elefante caísses. eu voasse. e as nuvens voltassem ligeiras ao céu.





















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certamente nada me fará mais feliz. por agora - recorro sete vezes à paisagem mais linda do mundo. por dia sete para não esquecê-la. mais de sete não para não sofrer - o teu rosto. quieto entre a folhagem - imagino uma árvore surda. uma árvore-silêncio. verde. muito verde. o tronco - quero mostrar-te que linda paisagem é o teu rosto quieto. sobrevoando o medo - dir-te-ei de dias felizes enquanto o coração bater.