sábado, 30 de abril de 2011

















Que tristeza tão inútil essas mãos
que nem sempre são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.

eugénio
de
andrade







. à boca da primavera. verde-água vivo na pele. a dor de não te dar a mão. sorrir. com a boca cheia dos nervos de não te ter. é o futuro. regressa com o vento. às paradas águas de maio. lembro o teu rosto. a pele dos dias vivos. uma saudade cresce no peito. como heras a subir muros. nenhum sonho é nosso. nenhum final feliz. e a nossa história é a certeza que a vida não perdoa.









































Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo ---
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

herberto helder






o que falta ao tempo é um campo de terra madura onde plantar corpos sãos. corpos onde cresçam nuvens onde cresça céu. nesta tarde lenta. à hora em que morremos. todos os rostos me encontram. mas nenhuma memória me traz a tua boca. nem as palavras regressam. como te espero todos os dias. talvez ainda te plante dentro da memória. cresças como a árvore atrás da casa. todas as casas deveriam ter uma árvore que as segurasse. nenhuma casa devia morrer. mesmo que só. tantas vezes nos braços das árvores fomos felizes. embalados pelo vento. um dia ao cair da tarde. ou noutra manhã de verão.









sexta-feira, 29 de abril de 2011
















Amor é o olhar total, que nunca pode
ser cantado nos poemas ou na música,
porque é tão-só próprio e bastante,
em si mesmo absoluto táctil,
que me cega, como a chuva cai
na minha cara, de faces nuas,
oferecidas sempre apenas à água.

fiama hasse pais brandão






sempre do amor falámos. quando encostavas o coração ao meu peito. cabeça posta na minha. silêncio de mãos dadas. não sei se a verdade é esta. ou se há verdade. ou se há coração ou cabeça. nenhum corpo dos que tenho conhece agora o teu. e é a memória que teima. lança-me no teu sorriso. onde coube o futuro. todo tão grande na boca fechado. para sempre. silêncio. nenhum amor é esse. nenhum. onde procuro o coração não encontra. onde me encontram não está o meu coração.















































Se tanto me dói que as coisas passem

Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem


sophia de mello breyner andresen





dizem - as coisas passam - que não passassem as coisas. que aqui ficassem. como quando o tempo fosse morto nos meus braços e dele pudesse fazer a eternidade que quisesse. ao tempo toda a vida escrevi histórias. de adormecer. quando à noite o sono não chegava e os relógios sequestravam o silêncio. quero o silêncio dos dias imensos. o segredo da madeira velha nos ouvidos. a quietude de uma casa vazia. que nenhuma voz se levante. nem um corpo. que adormeçam os homens todos. que o mundo seja a vida suplente que sonhei. uma cidade onde não houvesse gente. que gente faz doer. dos ossos ao coração.














quinta-feira, 28 de abril de 2011





































Um beijo
Que tivesse um blue
Isto é
Imitasse feliz
A delicadeza, a sua
Assim como um tropeço
Que mergulha surdamente
No reino expresso
Do prazer
Espio sem um ai
As evoluções do teu confronto
À minha sombra
Desde a escolha
Debruçada no menu;
Um peixe grelhado
Um namorado
Uma água sem gás
De decolagem:
Leitor ensurdecido
Talvez embebecido
"ao sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor
sempre em blue
mas era um blue feliz.


ana cristina césar






não sei dizer por que homens o coração passou. se outros homens não foram do coração que não foi. ou o coração não chegou e os homens fugiram. que homens fogem quando o coração é pequeno. o meu. coração. livre. como um pássaro. não sabe. que destino dar às asas. migrar. mais sentido faria não fugir. mas homem foge porque terra não chega. quer nuvens. quer mar. quer céu. não sei dizer com que homens o coração foi. mas voou.












quarta-feira, 27 de abril de 2011
















Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.

Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.

eugénio de andrade








quero eu dizer: não há tarde em que não te lembre. lembrar-te é dar-te vida. como se viesses do outro mundo teu. onde te meteram. e o verde-musgo das pedras nos teus pés se tornasse. a tua sombra de corpo vulgar. passeia. e fazes ninho e abeiraste da montanha e gritas. eco. a tua voz regressa. por entre os pinheiros. socorre aos pássaros. vai com as nuvens. não me hei-de esquecer. não te hei-de perder. não. volto a dizer o teu nome como quem diz para sempre.









segunda-feira, 25 de abril de 2011

































Nós encobrimos o que é feio, o que é dissonante, o que é áspero – andamos sempre a limpar o mundo de tudo isso. Uns de uma maneira menos violenta, outros violentamente – foi isso que fez Hitler, limpou o mundo. Quando ouço fazer a apologia da beleza e da saúde, fico muito perturbado. Porque é a apologia da “limpeza”, e isso é terrífico. A apologia do poema bonito, a apologia da frase harmoniosa… estremeço. No fundo, atrás disso vêm todas as outras coisas, e vem também a violência. O terrorismo da beleza.
Quase todas as pessoas que praticam isso fazem a apologia disso, e estão sempre a confrontar o que os outros fazem, ou escrevem, com isso, ou o que os outros são com o padrão colectivo. Quem não faz isso é afastado. É segregado, como os anões são segregados, como os surdos, como os mudos são segregados. E o que fica é um mundo que se quer sem mácula. Eu tenho horror à ausência de mácula. (…) A escrita, para mim, não é uma forma de atenuar, é um gesto, e eu queria que cada palavra fosse um gesto e não mais do que um gesto, com a violência do gesto, a rudeza. (…) O outro tipo de violência é quando a própria palavra é a violência do discurso, a palavra não diz a violência: e é ela própria violência. Aí, as pessoas afastam-se, repugnadas.

rui nunes
















- se estiver sol. quando estiver sol. levo-te às terras baldias - num barco vamos. nem que seja de papel. faço-me ao mar de olhos vendados. se tiveres medo pego-te ao colo e canto-te uma canção. - sossega. meu bem - amanhã é o futuro. se partires eu vou junto -



































não escrevo a ninguém, deixei de dar notícias.
ninguém precisa de saber onde me encontro, 
se cheguei bem, se vou partir, se mudei de rosto ou de máscara.
um pássaro, dois homens puxando redes.
até quando poderei suportar a minha própria ausência?
e a vertigem?

al berto








- chama - o teu nome do meio esqueci-o - clara - chora. não sei por que tantos nomes te deram. nem voltas a ser clara. nem tarde é esta. nem outra vez o rosto te procura. que corpo é esse. clara. esse que trazes. que boca fina. que olhos saídos. tão pobre. tanto às vezes choras - clara - por me esquecer do nome. por me esquecer - e sempre clara de manhãs cinzentas. noites tranquilas. pedras cobrindo ervas cobrindo terras cobrindo - memória. que dói dos pés à cabeça. clara. dos pés à cabeça. sem esquecer o coração.































minha querida maria. não me perguntes outra vez pela minha avó. terei de mentir-te. direi que foi finalmente em viagem. direi perto do mar. outro lugar verde. talvez. verde vento. montes altos da europa. praias quentes do equador. antártida. minha avó saiu da ibéria. minha avó foi de balão. ou nas asas de um pássaro grande. sentada. e os seus cabelos bonitos brancos cresceram tanto que formaram nuvens no céu. na sua saia ficaram presas todas as flores. é agora o mais belo jardim do mundo. ou direi que está sentada como de costume à porta de casa. lenço na mão. olhos cansados. sorriso. não maria. minha avó morreu faz tempo. faz tempo em todos os dias dezoito. triste de quem inventou os dias dezoito. morreu de velhice. ou de amor. partiu numa manhã fria. sabes como era. corria-lhe geada nas veias. morreu alegre. ou triste. no hospital de fafe.










domingo, 24 de abril de 2011

































No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.

herberto helder







a senhora tinha a pele como a tua. muito fina. nas mãos, na cara. nos braços. muito fina. a pele. tão fina que os ossos se viam do outro lado. fracos. os ossos. a tentear o corpo. o vestido preto tapava-lhe os joelhos. tão magros. imóveis desde os quarenta. a senhora sentada na sala.sabia de cor o nome de todos os filhos mas a idade não. a memória não guarda números. faz anos em agosto. tu fazias este abril. mais anos. tantos que nem lembro. os anos por ti não passavam. ficavam. hoje era para estar contigo. um dia voltarei a ver-te. a tua blusa azul ao vento. não te esqueças de mim avó. - tens uma campa muito bonita. flores novas. o teu sorriso de mármore - fala comigo. a senhora. na parede: quem chega que deus o salve quem parte que vá com deus.












sábado, 23 de abril de 2011



































e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia


al berto






nestes dias. ando doente. coração à tona de água. vai com a calda das manhãs frágeis. de vidro. parto. como os pássaros vou sobrevoando as nuvens. falta-me o ar. multiplicadas são as incertezas. uma nesga de tempo parada nos olhos. suponho ser desse tempo de ser feliz e sorrir alto. há canções que precisam ser cantadas. na margem do corpo semeio agora os dias. lugares férteis onde adormecer em paz. os dias passam e o coração fica. engomar a pele enrugada de gestos. adeus que me vou embora ó quietas tardes de abril. quero outro mês onde não chova nem falte ar ao coração.











sexta-feira, 22 de abril de 2011





































Não sei, deixo rolar.
Vou olhar os caminhos, o que tiver mais coração, eu sigo.
caio fernando abreu








.conheço. "a cabra cega dos corações miseráveis" de ana c. sei que em algum lugar escondo essa tristeza. não é "uma tristeza difícil" é a "tristeza de saudade" que clarice escrevia. todos os lugares me doem por serem esses. queria eu que fossem outros. mais distantes. que em certos sonhos me visitam. posso dizer pagú que vou contigo. porque também “eu quero ir bem alto, bem alto... é que do outro lado do muro tem uma coisa que eu quero espiar”.quero encontrar outros lugares. estes não me servem. tão longos são os dias. tão curtas noites me dão. que desassossego. trago comigo a gritar no peito esta certeza. "falta apenas o golpe da graça - que se chama paixão" não é clarice? sorris. também era teu. também. o desconforto de ter um coração tão grande e tão doente. mas "não meu bem, não adianta bancar o distante lá vem o amor nos dilacerar de novo".caio.




à minha amiga
patrícia lino
esse génio,

mar.




























Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.

ana c.






às vezes do silêncio saem rostos. da minha infância fogem como loucos. pequenos rostos de gente antiga. acobardados escondem-se entre árvores e riem muito alto noite inteira. difícil é esquecer o que regressa. o cheiro das camélias. o ruído doente dos sinos. quero outro coração que não se lembre. um coração de quem não teve infância. dois olhos que não reconheçam rostos pequenos. uma boca que saiba falar silêncio. se ainda assim voltarem eu direi que é o destino.











quinta-feira, 21 de abril de 2011





































"Não é raro, tropeço e caio.
Às vezes, tombo feio de ralar
o coração todinho.
Claro que dói, mas
tem uma coisa:
a minha fé continua em pé”

caio fernando abreu







justo me ergo. cabeça baixa ao colo. não faço fitas. dói-me o corpo todo. tenho uma árvore ao peito. passam-me os dias. altos como nuvens cheias. anunciam-se sem luz. eu estou decerto numa altura em que vida de bicho seria fácil. posso culpar o tempo. que a chuva não tem remédio e faz mal ao coração. posso culpar o outro. de quem escrevo em tardes calmas. a mim não me culpe o mundo que justo me ergo e vou pelo corpo como quem cala. este silêncio de coração mal-dito.










terça-feira, 19 de abril de 2011


































Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!

miguel torga








lembrei-me do teu porta-moedas. hoje. a meu lado sentou-se uma senhora. tinha mais ou menos a idade com que morreste. contava as moedas ao colo. um avental muito velho e roto. falava sozinha. alto. eu ouvi deus amor gato reforma céu. o cabelo comprido branco caído no assento. ninguém deu conta mas a certa altura chorou. gotas grossas de tempestade nos olhos. queria abraçá-la como te abraçava quando choravas. quando a solidão te era tanta que falavas alto - para os meus botões dizias - queria inventar outro mundo onde ainda existisses. falar contigo até adormeceres de cansaço ou de medo. levar-te ao colo em direcção às estrelas. - boa noite avó, até amanhã.









segunda-feira, 18 de abril de 2011



































A ti, a quem falo de poesia, a ti
que assistes ao desenrolar de qualquer coisa que não compreendes,
respondo-te que também eu não compreendo,
que não há que compreender,
porque nada nos condena à fala
antes que as palavras aconteçam.

luís quintais








com um sorriso nos lábios dizias - eu não quero morrer esta noite - não morres - tranco a porta. dou três voltas à cerca. olho as nuvens. penso nas américas. sento-me na soleira e conto até vinte e três. respiro fundo e conto outra vez. estás acordada. sinto-o. olhas as árvores lá fora. paisagens de árvores amenas. pensas um pouco em mim. dois olhos feitos de ruas vazias. a noite vai fria. lenta. espero. . o baloiço parado no jardim. as flores adormecem voltadas para ele. queria uma terra grande. como a das flores. uma terra grande onde construir uma casa grande onde ser feliz contigo. um amor grande. do tamanho do céu. quando está sem nuvens ou pelo menos quando tem poucas. um amor que contasse até vinte e três. respirasse fundo e contasse outra vez. pensasse nas américas. olhasse as nuvens. desse três voltas à cerca. abrisse portas. tocasse a pele.












domingo, 17 de abril de 2011





















No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

álvaro de campos









é água o que bate no lugar do coração e em vez do peito o mar. tu sabes da infância as cores. púrpura flor. azul rio. branco pele. verde. muito verde erva. castanho terra. quando nos sentávamos em nuvens a guardar as casas. animais tristes à sombra de árvores altas. choramos muito. os dias atrás de outros vieram cedo. o corpo cresceu. grandes pernas e braços agora presos a um pequeno tronco. a boca fechou-se. mordeu todos os nomes e histórias que ouvira. os rostos que amamos passam por nós como terra que o vento teima em levar. muitos morreram. se fomos felizes não sei. em algum momento nevou. subimos à serra. e o branco pele frio ficou. se fomos felizes não sei. sabe-o deus. se deus houver. pelo teu aniversário subias árvores. comias castanhas. choravas nuvens. e ninguém sabia.














sábado, 16 de abril de 2011








































Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.

- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.

herberto helder






se fosse amor falavas. as noites são como encostas voltadas para o mar. um descampado. sem árvores. só gaivotas - escuta. quero ficar contigo. fazer-nos felizes. - não sei se existes ou se não. se fosse amor tu falavas. nem que fosse para dizer-me - não estou. sei que todos os lugares são teus. por onde passo é o teu rosto que me visita. mas tu não sabes. ou não queres. ou nem isto é. ou só eu o sinto - não te quero falar do coração. não - fecho os lábios para não deixar entrar ar. quero morder o teu nome. guardá-lo para sempre. dizê-lo dói no peito. amor.













quinta-feira, 14 de abril de 2011

















Em silêncio descobri essa cidade no mapa
a toda a velocidade: gota
sombria. Descobri as poeiras que batiam
como peixes no sangue.
A toda a velocidade, em silêncio, no mapa -
como se descobre uma letra
de outra cor no meio das folhas,
estremecendo nos olmos, em silêncio. Gota
sombria num girassol. -
essa letra, essa cidade em silêncio,
batendo como sangue.

herberto helder








se o corpo então fugir foge com ele. qualquer lugar por dentro da pele chama o coração. nenhum tempo de fugir foi mais preciso. foge. não te perguntes se voltas. nenhum regresso pode pensar-se por agora. o que interessa é partir. para dentro de água. esperar uma maré cheia. lançar os ossos ao sal. morrer inteiro. quando amanhã a memória te trouxer devolve ao rosto a boca. e falarás silêncio. com o corpo muito quieto. suspenso. falarás silêncio. parte. metade do mundo espera. a outra metade corre.








segunda-feira, 11 de abril de 2011




























shutkina anya



















Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...

miguel torga







sobre magia falo-te amanhã. quando a noite partir e a luz voltar. tenho decorado os lugares para te contar. as ruas todas. todos os corpos atrás de todas as portas. fechadas ou abertas. olhares que te esperam. falei de ti às árvores e aos pássaros. estão de regresso ao céu como as flores à terra. sabemos das estações. sabemos. mais tarde conto-te uma história. um coração que deu a volta ao mundo. tão depressa. tão depressa que se perdeu. mas agora não. amanhã falo-te de magia.









domingo, 10 de abril de 2011


















Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

eugénio de andrade






era como se o corpo abrisse. osso por osso. e ver desaparecer-lhe dentro o universo. estrela a estrela. passavam por mim vestidas de noite. as mulheres. com cestos à cabeça e aventais de bolsos grandes. onde dormiam gigantes. quero contar-te dos meus fantasmas. o meu quarto é o único da casa. pequena. voltada para as nuvens. o vento que passa. ligeiro de manhã mais forte à noite. não fala. desses ventos calados de norte. e é deserto. areia grossa. daquela que arranha os pés. sangro. que dores fundas estas que me deixas. se me levasses ao colo. podíamos ir de encontro ao sol. morrer de luz. fazer de nós boas memórias. felizes. memórias que não morram. como os rostos jovens em fotografias. memórias. para sempre. entre uma invenção de madeira clara. que o corpo adormecesse em paz. quieto entre um lençol e outro. como se dentro de água fosse descendo o rio. e à boca do mar atracasse num ramo e ali ficasse para sempre. ninguém saberia de mim. só mais tarde lembrariam o teu nome como um dos que eu amei. sossegado no meio da minha vida à espera que alguém nos invente uma história feliz. não quero morrer assim. longe de ti.

































marlon rabenreither







Foi um sonho que eu tive:
Era uma grande estrela de papel,
Um cordel
E um menino de bibe.
O menino tinha lançado a estrela
Com ar de quem semeia uma ilusão;
E a estrela ia subindo, azul e amarela,
Presa pelo cordel à sua mão.
Mas tão alto subiu
Que deixou de ser estrela de papel.
E o menino, ao vê-la assim, sorriu
E cortou-lhe o cordel.

miguel torga








este sonho que tive.

era tarde nas ruas. dentro do coração. não se ouvia nada. o vazio da pele. tão só. tu chegaste depressa. uma imagem de luz. muito brilhante. à espera. demos as mãos. foste outono. de setembro a agosto. todos os meses. todos os anos. não houve tempo. não. desculpa. por não te ter ouvido gritar. que os meus olhos foram dois pequenos buracos onde semearam heras. desculpa-me por não ter voltado enquanto esperaste. é já tarde. a vida passa. este sonho que tive. como flores nos olhos. sorriso. queria ter assim a tua boca. perto do meu ouvido. falar contigo do tempo. ver murchar-te a pele. sei. é já abril. as ruas passam.













quinta-feira, 7 de abril de 2011
























As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração

ruy belo









estávamos na queda dos ossos. como folhas. dos corpos. ou era o coração que não sendo osso doía. e comprimido batia. devagar.devagar. que tempo incerto é este de doer no peito. tanto. com a cabeça voltada para o norte. ao colo uma sexta de flores. sorri. não passa nada aqui. quando tento lembrar-me das flores tenho dores maiores. há uma luz branca nos olhos. cega. não me recordo de ti. bem queria. para te dizer que a pele fugiu para terras amenas. de estações calmas e canais. muitos canais de água limpa. com pedras no fundo onde peixes se escondem da luz. essa luz branca que cega. nesses canais em terras amenas. em estações calmas. onde fui feliz.















segunda-feira, 4 de abril de 2011




































Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca uma pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me para as mãos ocupadas, as bocas,
as línguas que devoram pela atenção dentro.

herberto helder








nas noites penduramos as memórias longas. - lembras-te daquela vez - os espaços curtos de tempo. em que nos encontrávamos para uma gargalhada. o teu sorriso lilás. penduravas as estrelas nos postes mais altos. eu pegava-te ao colo. levava-te para dentro da noite. tão dentro que ninguém te visse. ninguém. era quando gritavas e o escuro te entrava pela boca. no silêncio ninguém te ouve. mas eu sei que estás. quando por mim passam ruas iluminadas. não sei se regressas porque sabes que estou só ou porque não sabes de ninguém. nem te lembras das ruas. nem de mim. nem nos postes mais altos penduras agora estrelas. procuro-te porque talvez estejas longe. tão longe que não saibas por onde voltar. talvez a memória te abandone. às vezes acontece. não regresses à noite. procura uma manhã clara. com ruas iluminadas. largos raios de sol. hei-de esperar por ti como quem espera o dia. amanhecer.










domingo, 3 de abril de 2011





















Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.



pablo neruda









abril. esperava-me com a mão em aceno. à entrada da casa. porta sempre aberta. e o coração era-lhe um pequeno floco de neve que o inverno esquecera.nunca lhe disse nada. qualquer coisa seria pouco. às vezes abraçava-a como se abraçam os corpos que queremos que fiquem para sempre. - adeus. até depois. são tantas as primaveras - fugia. nenhum pedaço de terra lhe servia. nenhuma vida. o seu nome é levado pela brisa quente. quando fecho os olhos é fácil lembrar o seu rosto. quieto à entrada da casa. a pele tão branca. os lábios flores de silêncio.queria dizer-lhe - não partas nunca mais.- mas nunca mais é pouco. e volto o corpo para a noite onde me espera o fosco brilho das paisagens. - não regresses aqui.
















sábado, 2 de abril de 2011

































Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?
Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha
qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha

ruy belo







há palavras que não dizemos. porque as noites frias voltaram. que o sono chegou e trouxe o mau tempo. chuva. vento forte. é quase domingo. somos quase jovens. a memória ainda não mente. lembro-me de tudo. tão bem. todas as coisas que passaram por mim. os tantos rostos. histórias que não quero esquecer. um dia escrevo-te todos os nomes. todas as pessoas que amei. as que partiram porque o vento quis ou a terra mandou. poucos corpos ficam. no final da história. olhamos a paisagem de olhos fechados e tentamos não esquecer nada. queria dizer-te mas há palavras que não dizemos. porque nos fazem mal. sei que não lembrarei certas coisas para não estragar outras. das pessoas guardo só o melhor. das viagens guardo só as mais belas fotografias. só para dizer-te que há palavras que não dizemos. só porque magoam. dessas palavras como homens estranhos a falar do sol. homens que nunca viram a luz. eu sei que me entendes. tens dentro de ti. a bater-te no peito. um coração tão grande e doente como o meu. um dia. qualquer dia. de olhos fechados às paisagens. encontraremos finalmente o silêncio.

abraço