domingo, 13 de março de 2011














Cala-te, a luz arde entre os lábios,
e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tacteia no escuro,
essa perna é tua?, esse braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente á tua boca,
abre-se a alma à lingua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi facil, nunca,
também a terra morre.
eugénio de andrade

















Essa vontade de um ser o outro para uma unificação
inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.
clarice lispector
























certo dia chegou-se a mim e gritou-me a primavera, corri à janela mas não reconheci na paisagem nenhuma semelhança à primavera, um manto branco-neve cobria a terra, da linha do horizonte ao meu olhar. aconcheguei-lhe o tronco nú com um abraço e fui deitar-me com ela junto à lareira. gostava de a ter amado mais nos dias frios, de a ter deitado mais vezes no meu colo, de lhe ter dito, como agora me apetece dizer, que não me importam as estações, o tempo, que tudo é quando queremos que seja e que sim, que ela tinha razão, naquele dia era primavera e eu sou triste por não me dar conta. falava muitas vezes sozinha, principalmente já noite alta, quando me sentia adormecido ou quando no gelo dos pés sentia morrer-lhe a pouco e pouco o coração. nunca soube de que falava, ouvia-a apenas em palavras rápidas e baixas, a sussurrar sobre o escuro das paredes, rente ao chão. dormia sempre sobre o lado esquerdo, quando lhe perguntei porquê respondeu-me que assim lhe pesava menos o coração; apeteceu-me chorar mas apenas me virei de costas, engoli em seco e fui sentar-me, como de costume, à janela, a ver passar a rua ou as pessoas na rua, daquelas pessoas que levam a rua consigo, porque sei da rua inteira de manhã e de apenas um pouco dela à meia-noite.
muitas vezes me apeteceu perguntar-lhe se me amava, se também por mim chorava quando chovia, se eram os meus gestos que lhe aqueciam as entranhas. e muitas vezes estive certo que sim, à maneira dela, de um modo que eu, confesso, nunca me acostumaria. certo é que quando me falava de amor era a sua pele que tremia, inteira, desde os ossos à superfície do corpo. nunca foi expressiva o suficiente para que me permitisse amá-la do mesmo jeito que ela me amava, nunca mo soube ensinar. muitas vezes me falava de outras coisas quando lhe apetecia falar de amor, falava do azul do céu quando não há nuvens, da suave brisa que atirava contra o chão as ervas daninhas nos campos, nos canteiros, junto à raiz das árvores ou do coração. todas as noites se sentava a embalar a solidão, cabeça tombada sobre o colo, pernas cruzadas no chão da sala, as mãos, como poderei eu falar das mãos, sempre geladas, pendiam-lhe dos braços como mortas. não sabia o que fazer enquanto tudo à minha volta se transformava, amargas eram as horas e o tempo que as comia nos relógios, nas paredes, no chão, nos móveis, nos espelhos, no telhado, daquela casa abandonada a desencontros de duas pessoas que se amam tanto. não sabia o que fazer. dizia-lhe de como me doíam as palavras quando as não dizia, dizia-lhe do espaço entre os nossos braços, de como me atrapalhava o não jeito para grandes conversas, como me magoavam os silêncios, as faltas, as constantes mudanças. dizia-lhe tudo quando a noite vinha porque era à noite que tudo me doía mais. a ela só lhe ficava um adeus entre os lábios, preso no caco da boca, à espera de ser pronunciado antes do corpo abrir a porta e escapar. escapar do mundo, eu sei, que a matava, escapar de mim e do amor que não soube dar-lhe. voltava de madrugada, corpo gelado, deitava-se de costas para mim e ficava de olhos escancarados a ver amanhecer na fronha do lençol. costumava ouvir-lhe algumas lágrimas mas calava-as nas minhas.
ela era o grande amor da minha vida, sabia-o bem, mas o amor, só, não chega para fazer duas pessoas felizes. costumava amar-me em espaços e tempos diferentes. amava-me à superfície e eu nunca a soube amar senão na profundidade. era eu que fugia, sempre, por uns dias, alongava-me na estrada para lhe dar espaço, para me dar espaço, para compreender como mudam as pessoas, como se alteram os afectos, para, no segredo da minha própria solidão, encontrar em mim o som dos seus passos, tão violentamente atados aos meus pés, que poucos dias depois estava de volta, e todos os regressos eram como mortes de árvores que se cortam ao meio. como seria possível o amor doer. era na humidade do rosto que se criavam larvas, bichos acostumados à lama dos sentimentos, alimentavam-se das lágrimas e ali iam ficando, junto aos olhos, a criar apatia. em mim crescia uma tristeza passiva, dessas que se encostam a nós como doenças e ficam, a aumentar-nos o negrume nas entranhas. a mim tudo me doía de uma forma lenta, tão lenta que eu próprio não me dava conta de como morria, pouco a pouco, em mim, de amor, ou de outra coisa qualquer a ele tão semelhante que dificíl seria não lhe chamar, amor.
soube das pessoas através dela, antes disso desconhecia o mundo que existe para lá da minha janela, onde era fácil à noite ver, como por magia, do negrume se fazia o universo, pintado de estrelas e outras coisas maiores como a lua, ou os seus gestos. cedo aprendi que entre nós cresciam ervas daninhas, cedo as tentei cortar mas em vão, cedo reparei que nos seus olhos nascia noite sem estrelas nem lua, sem universo, tudo era baço. tentei inumeras vezes aconchegar-lhe o corpo, ou a dor, sentava-me com ela à lareira, a ver ranger a madeira seca, a ver formarem-se as chamas, a ver crescer a cinza, a ver morrer o fogo. sem uma única palavra, sem um único mover de corpo. estáticos até ao limite superficial da pele, onde tantas vezes saboreei a vida. antes dela era o tempo de ver morrer o mundo. nos primeiros dias não me deixava dormir a seu lado, ficava do lado de fora da porta do quarto, aninhado na madeira húmida do chão, enrolado num cobertor, à espera que a manhã a descibrisse desperta. tinha medo que morresse sem mim, sem ninguém.
vinha às vezes falar-me devagar, principalmente aos domingos, já tarde alta, chegava-se a mim por trás e enumerava os pequenos objectos da sala, um a um, até se lhe esgotar a voz na chávena presa aos dedos da minha mão, depois abraçava-me rápido, antecipando a fuga subsequente. escondia-se de mim durante dias, fechada no quarto brincava com as paredes, com as moscas mortas contra as paredes, com a madeira suja do tecto, com a roupa, com o cabelo que sempre cortava rente, com o dia, com a noite, com os móveis, e deixava que tudo aquilo se suicidasse lentamente nos seus olhos, até lhe subir uma certa loucura à cabeça. deambulava depois pela casa, descalça, à procura de calor. sempre soube dar-lhe espaço, até ela se afogar no espaço que eu lhe dava, como uma pequena lágrima quando cai à chuva.
nunca a chamei pelo nome, duvido que tenha nome próprio, se o tiver deve ser um desses substantivos monossilábicos, qualquer coisa simples como o mar. nunca gostei de dar nome às coisas ou às pessoas. sabia-a perto porque me cheirava a primavera, mais perto ainda quando me sabia a sal. ela nomeava todas as coisas como se os nomes que lhes dava fossem morrer com elas a seguir, quando num ápice de loucura ou terror, move-se o corpo. julgava que era nela que crescia a morte, qual flor silvestre a nascer num muro, quando nem sequer é tempo de flores, nem de muros. eu sabia que nela nascia o nome de todas as coisas que eu nunca soube existir.
quando me ponho agora a observar o mundo, que é esta pequena casa, escondida ao fundo de uma não menos pequena rua, sei de todas as pessoas, todos os rostos que aqui estiveram a julgá-la, a apontar-lhe o dedo, a ameaçar-lhe os silêncios. quis um dia expulsá-las todas daqui mas não me deixou. acredito que pertenciam já às raízes da sua, mais lúcida, memória; acredito que todos os dias tentava recordá-los menos vezes. mas eram esses rostos que a impediam de sair deste espaço invernal, amarravam-lhe os pés ao soalho, as mãos ao tecto e ficava crucificada à censura de meia dúzia de vozes que se querem longe. ainda os ouço falarem de morte, todos acanhados, como se a morte fosse um bicho caprichoso e pudesse derepente aparecer-lhes. ela calada, como sempre, à espera que a morte não fosse tão óbvia, tão sem sal, perderia toda a graça.eu quando falo de morte é do lado de fora que a vejo, por dentro é só carne e órgãos e sangue e outras coisas, que andam por ali a boiar, restos de afectos, creio, sentimentos, julgo. a morte a ela dava-lhe tesão.
um dia partiu na calmaria de um beijo, foi, primeiro pela luz fosca da manhã depois pelo sol, nunca mais a voltei a ver. às vezes procuro-a fora de mim, na imobilidade dos objectos, no caudal estático das lágrimas, já sem rosto, ou corpo que a recorde. mas é por dentro da pele que a encontro, a sua solidão a abrir-se em ferida no meu peito, o seu não jeito para o amor, como se amar-me fosse o que de mais precioso lhe entregara a vida. custa-me recordar-lhe as feições, às vezes prefiro chorá-la, só assim, chorá-la inesgotavelmente, até me afogar dela e morrer para sempre. estar só é ver crescer a humanidade nos objectos e ver morrer-nos a humanidade no corpo, ser humano é transitório. a mim custa-me sentir tudo isto, sem paz, sem nada. sinto-me sem casa, sem vida que me habite, sem um diabo que me carregue ao colo, me leve de encontro à luz solar que a levou.
acordou-me. estava vestida de neve, descalça, gelada. era inverno, talvez novembro, não consigo precisar o dia. em cuecas desci a correr as escadas, assim saí à rua e dançamos de madrugada, flocos de vida ainda, a desfazerem-se em água. foi o madrugar mais bonito da minha vida, ainda hoje lhe sinto o gelo a queimar-me a pele do peito, a incendiar-me o coração. não me deixou abraçá-la, raramente me deixava abraçá-la, encolhiasse depois no chão, em forma de caracol, joelhos contra a boca. nunca lhe soube dizer que a amava ali assim, sozinha, enrolada em si mesma, a tentar ouvir bater o seu próprio coração.









parabéns, b.















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